________

quinta-feira, janeiro 18

A economia da África do Sul explica o Soweto de ontem e hoje

da África do Sul [4/1/2007]

Impossível entender a África do Sul e seu atual processo político sem tentar compreender o Soweto. Durante o apartheid, tudo foi feito para isolar os negros da minoria branca. A solução encontrada na maior cidade do país, Joanesburgo, foi criar uma área que fica a uns 30 minutos de carro do centro. O governo branco construiu casinhas de um quarto, sala e cozinha no local e encaminhou as famílias negras que ainda moravam em áreas multirraciais para lá. Mas não lhe deu a posse do terreno, alugava-lhes as moradias.

Para completar o serviço, construiu uma rodovia que cerca a cidade, deixando o Soweto para o lado de fora. Também criou morros artificiais, resultado da exploração de ouro, que geravam tanto uma barreira entre os dois mundos, como também eram utilizados como postos de observação e defesa pela polícia branca.

Hoje a população do Soweto ainda é quase totalmente negra. Sendo apenas uma ou outra das 50 comunidades que se concentram ali formadas majoritariamente por mulatos. Certamente alguns brancos vivem lá, talvez uma centena entre os três milhões de moradores.
A separação entre mulatos e negros também ainda é algo que resiste mesmo após a queda do apartheid. Há uma espécie de recorte que coloca os mulatos no meio da ainda resistente diferença racial que existe na África do Sul. Eles são excluídos pelos dois lados, que entendem que de algum jeito são frutos de uma traição racial. E no apartheid teriam tido um pouco mais de privilégios que os negros, o que os coloca muitas vezes mais próximos politicamente dos partidos que representam os brancos.

Há lugares, como Cidade do Cabo, em que a Democratic Alliance (DA), partido que representa os interesses brancos, tem vencido eleições desde 1994, quando a democracia retornou. E isso é explicado pelo fato de na região a porcentagem de mulatos ser muito alta. Como se aqui a ideologia fosse a da cor da pele. As posições políticas se movimentam a partir desse elemento.

Mas a política fica para o próximo artigo. Ao tratar do Soweto, apresentaremos o que foi possível compreender do atual momento econômico da África do Sul. Até porque talvez esse seja o elemento principal que pode ser extraído da visita que fizemos a esse espaço negro cantado e recantado mundo afora.

Hoje, o Soweto não é mais um amontoado de casinhas populares e uma quantidade imensa de barracos apinhados por todos os cantos. Aquela Soweto que a turma acima dos 35, como eu, tem na memória por conta das imagens do tempo do apartheid mudou. Para muito melhor. E até os brancos racistas reconhecem e tem explicação para o fato.

Richard, vou chamá-lo assim porque não realizei exatamente uma entrevista com ele, o homem do casal proprietário da Guest House localizada no bairro de Linden, onde ficamos, ao saber que estávamos indo visitar o Soweto, disse: “Vão perder tempo, vai ser uma decepção para vocês. Aquilo lá se tornou um lugar parecido com aqui. Tem casa tão boa quanto aqui. Até porque depois que esse novo governo entrou eles ficam com o que tem de bom, não pagam imposto, não pagam luz, ganharam as casas... Tem até branco vagabundo indo morar lá, tamanha a moleza”.

De fato, os moradores de Soweto hoje têm a escritura dos imóveis onde alguns já residem há 50 anos. O primeiro governo do African National Congress, partido de Mandela, regularizou a situação imobiliária do local. E lhes deu a posse das casas onde residiam. Com isso, explica nosso amigo taxista Russell G. Ditlhoiso, as casas melhoraram, mas evidente que ainda está longe de algo comparado aos bairros classe médias de Joanesburgo. “Antes as pessoas não reformavam as moradias, até porque eram obrigadas a pagar aluguel, não tinham trabalho, a educação para quem morava aqui era um lixo, saúde também. Com a libertação, depois de 1994, a gente passou a ter orgulho do bairro, do lugar onde mora, e hoje você vê casas lindas por aqui”. O fato é que o Soweto é o local da região de Joanesburgo onde há maior crescimento econômico hoje.

Ao perguntar sobre o que faziam ali enormes guindastes escavando para uma obra que pela dimensão dos buracos vai ser muito maior do que as construções de similares no Brasil, Russell, cheio de orgulho, disse que ali estava sendo construído o primeiro shopping center do bairro. E que o dono era um negro, de nome Maponha. Talvez não se escreva assim. A sonoridade me levou a crer que esse era o nome do empresário, perdão pela possível imprecisão, leitores.

A resposta da mudança
Existem estudos, inclusive da ONU, que apontam que a desigualdade social aumentou na África do Sul após o fim do apartheid. O Índice de Desenvolvimento Humano do país teria piorado e a diferença econômica entre os 20% mais pobres e os 20% mais ricos, crescido. O atual governo contesta os dados, dizendo que a base de informação utilizada antes ignorava uma enorme parcela da população que não existia nos dados para o oficialismo de então.

Segundo o último censo sul-africano, publicado em 2003 e realizado durante o ano de 2001, a África do Sul tinha então 44.819.778 de habitantes. Sendo que, 79% se auto-classificavam africanos (negros), 9,6% como brancos, 8,9% “coloured” (mulatos) e 2,5% como indianos/asiáticos. Desse total, 21.685.415 do sexo masculino e 23.662.839, feminino.

A política macro-econômica do país não mudou muito desde 1994, continua numa linha neoliberal um pouco mais moderada, mas onde cabem inclusive privatizações como a de empresas de setores estratégicos como aço, petróleo e gás (Iscor e Sasol).

Mas há um enorme esforço para inclusão dos setores mais pobres, fundamentalmente da raça negra, mas não só. O sistema de cotas na África do Sul funciona a partir dos dados censitários. Um estudo recente publicado pelo governo comemorava o fato de que “o serviço público está muito próximo de atingir uma perfeita representatividade, aproximando-se do perfil da população em raça e gênero. Os africanos representam 72% do serviço público, porém deveria haver mais mulheres e mais deficientes em cargos de primeiro escalão. Até março de 2003, 52% dos servidores eram do sexo feminino, mas apenas 22% dos gerentes-seniores eram mulheres.”

O mesmo estudo também confrontava dados sociais de levantamentos realizados em 1996 e 2001. Comparar com antes de 1994, segundo o texto, é impossível porque os dados existentes eram absolutamente distorcidos. As moradias com acesso a água limpa teriam passado de 80% para 85%, com luz elétrica de 57,6% para 69,7%, moradia em habitações formais de 57,5% para 63,8%, sul-africanos com ensino fundamental concluído de 16,3% para 20,4%, por exemplo. Uma transformação de impactos importantes, que vem sendo realizada aos poucos.

Isso não parece ser um problema para a maior parte dos negros daqui. Há um certo orgulho em saber que estão, como se costuma dizer, conseguindo trocar a água do balde, sem jogar fora a criança.

Russell acha que a mudança passa pela educação. “Não adianta a gente querer mudar tudo de uma vez agora que não vai dar certo. A nossa luta tem de ser cerebral, na mudança da mentalidade, na construção de um povo negro mais inteligente e bem informado. Antes só os brancos tinham acesso à boa educação, agora estamos tendo isso aos poucos. Já estamos mudando muito. Eles diziam que a gente não tinha capacidade para nada. E olha só, você vê estradas esburacadas aqui, não, né? Todo mundo que vem aqui diz que nossas estradas são de primeiro mundo, e somos nós, os negros que administramos. Está vendo esse aeroporto?”, aponta para o aeroporto internacional de Joanesburgo, “então, até 1994 ele era menos de 1/3 do que é hoje. E era velho. Hoje é um orgulho”. De fato, é maior e mais moderno que o de Cumbica, em Guarulhos. “E sabe quem reformou, que o modernizou? Fomos nós, os negros, que eles chamavam de bárbaros.”

Ele segue dizendo que outros países preferiram o confronto armado e as mudanças radicais e que hoje estão enfrentando enormes dificuldades. “Passei perto da luta armada, minha vontade era sair matando branco. Em 1994 ainda havia gente que defendia esse movimento, eu mesmo era um. Mas o Mandela nos convenceu a lutar com a cabeça. Ele tinha razão”.

Evidente que não há países africanos tão ricos quanto a África do Sul e por isso as soluções daqui não podem ser aplicadas ali. Para o leitor entender, a África do Sul detém do total de reservas mundiais 88% do grupo de metais da platina, 83% de manganês, 72% de cromo, 40% de ouro e 25% de diamantes. Foi o controle desse enorme riqueza, aliás, que levou ao apartheid. A elite branca não aceitava que os negros tivessem acesso aos benefícios resultantes dela. E o Soweto e a raça negra que pagaram os custos dessa lógica bárbara por muitos anos, hoje são beneficiados por ela. Amém.