________

quinta-feira, janeiro 18

A alegria de saber que Moçambique existe

Foto: Juliana Di Thomazzo

De Maputo, Moçambique [10/1/2007]

Seria talvez conveniente abordar aspectos da política, da economia e da cultura já nesta primeira matéria produzida a partir de Maputo, capital de Moçambique. Vamos fazê-lo, mas antes é preciso falar do que parece mais impactante neste pedaço do continente africano que fala português: a generosidade e a graça do povo deste país.

Curioso como o moçambicano médio tem muita semelhança com o nordestino brasileiro padrão. O leitor vai entender melhor com o exemplo a seguir. Fazia uma hora que havíamos chegado a Maputo e saímos para uma caminhada ao redor do hotel. Após 100 metros entramos em um mini-mercado para comprar água. O calor aqui está imenso, até sufocante. Decidimos perguntar à moça que nos atendia se conhecia algum restaurante típico e agradável. Já era passada a hora do almoço. De origem chinesa, ela se atrapalhou para responder e eis que um rapaz que estava já saindo com seus pacotes pergunta: “Mas vocês conhecem ao menos um bocadinho a cidade?” Havíamos chegado a menos de uma hora. Ao saber, propôs: “Então vão de boleia (carona) comigo... vou levá-los até um sitio muito especial…”

Foto: Juliana Di Thomazzo
Claro, leitores, que isso poderia acontecer na nossa primeira hora de estadia na cidade e depois não vir a se repetir. Mas não é isso que está acontecendo. Ao contrário, as demonstrações de atenção e afeto têm se repetido constantemente. Vão do garçom ao vendedor de artesanato na rua. E chegam ao ponto de, depois de algumas horas de papo com um casal, termos sido convidados e muito bem recebidos por eles num jantar que nos ofereceram em sua residência. O intuito era, como acabou acontecendo, nos preparar um frango ao molho de amendoim, semelhante a uma moqueca. E ao mesmo tempo nos fazer ouvir música tradicional moçambicana.

Apesar de tudo, uma sensação de que as coisas ainda vão acontecer por aqui

Há pouco mais de 30 anos Moçambique é independente. Isso só aconteceu em 25 de junho de 1975, depois de 13 anos de uma dura luta armada liderada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) contra os colonizadores portugueses. E não houve concessões. Os europeus só saíram daqui após sucessivas derrotas e ao perceberam que tinham ampla maioria do povo contra si. O líder do movimento nacionalista era Samora Machel, seria o primeiro presidente do país.

Naqueles dias, o índice de analfabetismo não era muito diferente do que encontrado na década de 50, quando foi realizado o ultimo levantamento antes da independência. Em 1950 os analfabetos eram 97,86%. Os índices melhoraram, mas nada impressionante. No censo de 2000, os moçambicanos eram 19.104.696. Entre os homens, 57,5% eram alfabetizados. Das mulheres, apenas 23,3%, perfazendo uma média de apenas 40,1% de alfabetizados. Mas o que ocorreu então com a tal revolução moçambicana?

Antes de simplificar a resposta é preciso avançar um pouco no contar da história do país. Após a independência, sob a liderança de Samora Marchal, o país assumiu uma posição à esquerda, mais próxima da então União Soviética, num mundo bipolar e envolto pela Guerra Fria. E tirou, como uma de suas prioridades, apoiar as lutas antiimperialistas no continente. Isso imediatamente colocou Moçambique em posição antagônica às duas principais potências de então, a África do Sul, ainda sob o apartheid, e a Rodésia, colônia inglesa, que viria a se tornar independente apenas em 1980, passando a se chamar Zimbawe.

Enquanto o governo de Moçambique, por exemplo, apoiava o Congresso Nacional Africano (CNA) na luta pela libertação do apartheid, incluindo o envio de armas para esse movimento, o governo sul-africano financiava a resistência interna contra o governo revolucionário de Moçambique, fortalecendo os contras, organizados principalmente na Renamo.

Em 16 de marco de 1984, porém, na fronteira comum dos paises, nas margens do rio Nkomati, Samora Machel e o racista Pieter Botha, assinaram o acordo de Nkomati, onde ambos se comprometiam a não se agredir e nem a financiar os opositores de cada governo.

A história mais comum a se ouvir é que Samora teria sido assassinado pelo governo sul-africano logo após a assinatura do acordo. E que os sul-africanos teriam esperado a assinatura do acordo para matar o então presidente do país. Pode ser. Mas Severino Sumbe, editor chefe do jornal A Noticia, de certa forma um jornal do governo, que tem como principal acionista o Banco de Moçambique, não se entusiasma com essa versão, mas parece preferir outra. “Recentemente cogitou-se até que poderiam ter sido os soviéticos os autores, porque eles não concordavam com o acordo assinado por Samora, queriam derrubar o apartheid na África do Sul e contavam com Moçambique para isso. Talvez eles não tenham entendido que ali era preciso dar um passo atrás para talvez dar dois a frente.”

Foto: Juliana Di Thomazzo
Educação é um dos principais problemas de
Moçambique.
Apenas 40% da população havia sido
alfabetizada, segundo dados de 2000.


Mesmo sem a suposta ajuda da África do Sul à oposição, a guerra civil em Moçambique ainda durou até 1992, quando um pacto de não agressão entre Renamo e Frelimo foi assinado em 4 de outubro. Depois disso, em 1994 o país teve sua primeira eleições democráticas. Ou seja, há 12 anos e alguns meses Moçambique vive sem guerras. E com eleições. E antes disso tinha um povo praticamente 100% analfabeto.

O povo ainda assim é do jeito que é
Não seria o caso aqui de ficar apresentando justificativas para o ainda enorme analfabetismo do país e também para a sua situação caótica do ponto de vista do sistema médico, das vias de transporte e da limpeza pública. Mas evidente que um país não se constrói em 10 anos, principalmente depois de ter sido espoliado por mais de um século, num modelo de colonização que tinha por objetivo retirar o máximo para enviar para o império, não se preocupando com o desenvolvimento local.

A pobreza por aqui também é grande. A renda per capita anual é de US$ 1 mil. Para comparar, a pobreza que se enxerga nas ruas parece um pouco pior do que a do Brasil, mas ao mesmo tempo nada comparável as cidades indianas que visitamos por ocasião do FSM de Mumbai. Ou seja, numa perspectiva comparativa, a qualidade de vida do moçambicano médio estaria entre o Brasil e a Índia.

No ano de 2006 o crescimento do país deve ficar em 7%, os dados oficiais ainda não foram divulgados. Em 2007 o esperado é 10%. Se isso vier a ocorrer, com apenas 20 milhões de habitantes, e com um economia crescendo neste ritimo, Moçambique pode começar a pensar em mudar seu destino.

Claro que há um tanto de torcida nisso, mas há algumas questões objetivas. O país tem a maior costa marítima da África e fica em posição estratégica para ser entreposto comercial de muitos deles. Tanto pode desenvolver sua indústria pesqueira como ampliar a participação econômica do seu setor portuário. Ao mesmo tempo tem uma cultura artesanal na área de madeira que impressiona e, se desenvolvida, pode levar a uma indústria de móveis invejável. Mas mais do que isso, tem um povo que parece querer fazer as coisas mudarem.

A pobreza de Moçambique, por exemplo, foi de algum jeito fator gerador de luta, quando dos confrontos pela independência do país. Um fator que os levou a pegar em armas para defender sua autonomia territorial. Mas não produziu ainda violência urbana, bastante reduzida. É possível passear pelas ruas de Maputo a qualquer hora do dia de maneira relativamente segura, muito mais tranqüila que nas cidades grandes e médias do Brasil. E durante a caminhada, se lhe reconhecerem como turista (no nosso caso até pela diferença da cor da pele e dos traços ocidentais isso é comum) em vez de olhares ameaçadores, vão lhe proporcionar sorrisos e comprimentos.

Mas se o leitor foi percebido brasileiro e o interlocutor for homem, claro, que o maçambicano tomará coragem para abrir uma conversa, já sabendo que você fala português, e vai desfilar meio time do Brasil, a começar por Ronaldinho. Se você for como o que assina, não vai deixá-lo esquecer do Robinho. E vai dizer que se o Parreira não fosse tão teimoso teríamos com o ex-santista no ataque e mais algumas alterações no time ido mais longe na Copa passada. E que se possível você vai voltar aqui, para Moçambique, para ver a Copa que vai acontecer em 2010 na África do Sul.

Saiba, leitor, Maputo fica só a cinco horas de ônibus de Joanesburgo, e um dos estádios que devem sediar a Copa da África estará a apenas duas horas daqui. Com um povo tão interessante como este, deve ser o máximo ver uma Copa do Mundo por aqui. Até para começar a conferir se, de fato, o país terá começado a construir uma saída para um futuro diferente.