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quinta-feira, janeiro 18

Uma democracia pautada pela cor da pele

Foto: reprodução Sam Nzima
Da África do Sul [8/1/2007]

De 1948 até as eleições de 1994 o sistema baseado no apartheid garantiu à minoria branca da África do Sul domínio completo dos rumos do país. Esses 40 anos de estupidez política levam a crer que talvez mais do que outros 40 serão necessários para que as posições ideológicas não tenham como determinante a diferença de cor da pele.

É incrível como o mapa político atual da África do Sul guarda relação com sua composição étnica. Na última eleição, por exemplo, o principal partido anti-apartheid, Congresso Nacional Africano (CNA), que tem na figura de Nelson Mandela sua referência maior, obteve 69,68% dos votos. Enquanto isso a Aliança Democrática, ficou com 12,37%. A legenda que prevaleceu no sistema racista era o Partido Nacional, que praticamente definhou, tendo tido na última eleição apenas 1,65% dos votos. O herdeiro político da ideologia branca passou a ser a Aliança Democrática.

Só para relembrar dados que divulgados na matéria anterior, o último censo sul-africano de 2003 registra que no país 79% se auto-classificavam negros, 9,6% brancos, 8,9% “coloured” (mulatos) e 2,5% como indianos/asiáticos.

Para que não cometer uma imprecisão histórica, é preciso registrar que o apartheid ganhou forma jurídica constitucional em 1948, mas a segregação dos negros no país é ainda anterior. Desde o início do século já existiam na África do Sul leis que distinguiam os habitantes em decorrência da cor da pele.

De 1948 em diante o que ocorreu é que o domínio racial e a segregação tornou-se regime político. Em Joanesburgo, o Museu do Apartheid faz o visitante reviver um pouco daquele período.

Desde a compra do ingresso na bilheteria, onde se recebe um tíquete que o identifica por cidadão branco ou não-branco (neste caso, independente da cor do visitante), até a entrada distinta para os que portam os tíquetes diferenciados, passando pela possibilidade de assistir programas noticiosos da época, ver entrevistas de ministros e fotos de massacres como o que motivou a maior revolta no Soweto, em 16 de junho de 1976, que levou à morte 600 pessoas, principalmente jovens. O primeiro deles teria sido Hector Pieterson, de 12 anos, hoje também o nome de um Museu no Soweto, onde essa história está registrada. A foto de destaque dessa matéria é do momento em que Hector Pieterson era carregado por um de seus colegas que o resgatou em meio ao confronto.

No Museu do Apartheid, tudo é de certa forma nojento, mas talvez um dos momentos mais reveladores daquele escatológico regime seja a reprodução de uma das entrevistas de um ministro da Justiça da época do apartheid. Uma boa parte do museu é composta por inúmeras televisões que projetam, repetidamente, documentários sobre o período. A entrevista em questão é reprisada numa das telas que relembram o noticiário da época. Ao responder a questão de um jornalista internacional, que de alguma forma ponderava se aquele tipo de segregação não feria a todo e qualquer aspecto do direito internacional, o ministro de maneira absolutamente tranqüila, numa tradução livre, disse algo como: “isso seria verdade se estivéssemos falando de pessoas civilizadas. É esse caminho que estamos tentando construir, mas não é fácil. Os nativos desta parte do planeta são bárbaros ou semi-bárbaros. Eles não são civilizados. Viveram sempre em guerra, se matando e por isso não estão acostumados a trabalhar, a viver em sociedade, só a guerrear. Nós, brancos, que estamos trabalhando pelo desenvolvimento deste país, deste continente, temos de tomar precauções...”.

Depoimentos bárbaros como este, misturam-se a fotos ridículas, como a de um juiz espiando do lado de fora da janela de uma casa, prancheta na mão, buscando flagrar um casamento inter-racial no momento da relação sexual, já que em 1949, uma das primeiras leis do então novo regime, foi proibir a miscigenação entre pretos e brancos.

Uma certa herança ainda permanece
Mesmo com todas as reformas políticas que hoje garantem ao negro tanto direitos civis fundamentais, como também políticos, a maior parte da população sul-africana ainda é de gente que viveu no regime anterior, que se encerrou só com a eleição de Nelson Mandela, em 1994, mesmo que o processo que levou a queda tenha começado em 1990.

Em 1990, depois da renúncia de Peter Botha, Frederik de Klerk deu inicio a negociações que levaram à libertação de Mandela, após 27 anos de prisão, e a legalização de partidos então na clandestinidade, como o Congresso Nacional Africano, que abriu mão da resistência armada.

Mandela governou o país de 1994 a 1999, mas já em sua gestão, o homem forte era o atual presidente, Thabo Mbeki, que se elegeu em 1999. Em abril de 2004, foi conduzido a um novo mandato que se encerrar em 2009.

Nascido em 1942, ele vem de uma família negra com forte tradição na política. Seu pai, Kovan, foi uma importante liderança no Partido Comunista Sul-Africano, que também ficou na clandestinidade durante o Apartheid. Mbeki foi um dos dirigentes da resistência armada que desencadeou o fim do regime anterior.

Ao se reeleger em 2004, ele se colocou como uma das suas principais metas acabar com qualquer foco de resistência política que ainda guardasse relação com a divisão anterior do país entre os brancos e as outras cores, especialmente os pretos, o que demonstra a relevância que essa questão ainda tem no cenário político local.

O modelo atual
Na África do Sul o regime político é um misto do que entendemos por parlamentarismo e presidencialismo, já que o nome do presidente sai do parlamento, mas a campanha é feita a partir de sua figura. Além disso, ao mesmo tempo o presidente é chefe de Estado e chefe de governo. Outra curiosidade do sistema local é que para formar o ministério o presidente tem permissão para escolher apenas dos ministros que não sejam parlamentares.

O país tem nove províncias, sendo que cada uma tem seu Conselho Executivo liderado por um primeiro-ministro local. Na eleição de 2004, que contou com a alta participação de 76% de eleitores, o CNA obteve maioria absoluta em das 7 das 9 províncias do país. E em aliança com outros partidos menores conseguiu também garantir controle de Western Cape e Kwazulu-Natal, o que o faz ter os nove primeiros-ministros das províncias.

Um dos poucos locais do país onde a CNA tem dificuldades eleitorais é na região do Cabo. A Constituição vigente, além das nove províncias, que são figuras políticas semelhantes ao estados no Brasil, criou três categorias distintas para definir as cidades: as grandes metrópoles, os municípios e os distritos. Existem seis grandes metrópoles: Joanesburgo, Durban, Cidade do Cabo, Tshwane (ex-Pretória), East Rand e Port Elizabeth. São 231 municípios e 47 distritos. Desde a primeira eleição a CNA não consegue eleger o governante da região metropolitana da Cidade do Cabo. A explicação dos analistas locais é a de que mesmo tendo muitos negros, como todas as outras cidades do país, Cape Town tem uma grande população mulata, que curiosamente se sente mais representada nos partidos liderados por brancos.

Na última eleição, a candidata da Aliança Democrática prevalece sobre a candidatura do CNA por apenas dois votos no parlamento. Acredita-se que esse fenômeno isolado não permaneça numa próxima eleição, já que o partido do presidente do país tem aumentado sua votação no local a cada disputa. E isso se explica pelo aumento da população negra na região. Ou seja, voltamos ao começo. A democracia sul-africana ainda parece ter muitos anos determinados pela diferença da cor de pele.

1 Comments:

At 11/20/2009 5:07 AM, Anonymous Anônimo said...

ler todo o blog, muito bom

 

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