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quinta-feira, janeiro 18

O drama de Xavier e a beleza de Amelinha

De Maputo, Moçambique [12/1/2007]

Xavier Felizberto (a direita na foto) estava deitado no meio do que deveria ser a sala sobre uma esteira e um lençol surrado. Quarenta e dois anos, magérrimo, nada mais do que pele e osso. Completavam o cenário uma mesinha no canto, com duas caixas de papelão abertas e a alguma medicação. E o olhar sem esperança das filhas, Amélia Xavier da Silva, 12 anos, e Júlia Xavier da Silva, 23, que haviam nos recebido à porta. “Eu estou esperando o médico vir para dar injeção. Essa doença. Estou muito mal, muito mal...”

As meninas perderam a mãe há dois meses. E se preparam para a morte do pai.

Não há poesia na tragédia. A querida Moçambique que deixamos nesta última quinta-feira (11) com um nó no peito tem um povo com gana suficiente para mudar seu destino. Mas além de superar seus dramas sociais terá de enfrentar também a epidemia da Aids que está massacrando o que o país tem de melhor, o mesmo povo.

A situação em que se encontra Xavier Felizberto não é única. Em Moçambique o HIV já atinge 20% dos habitantes. E tem matado de forma mais cruel do que nos primeiros anos em que o vírus chegou ao Brasil. Quase ninguém tem acesso ao retroviral, que dá qualidade de vida ao infectado e lhe garante sobrevida. Pior: poucos têm boas condições sanitárias e de alimentação para enfrentar a doença ou, como Xavier, sequer um local adequado para repousar o corpo fragilizado com um mínimo de dignidade.

Segundo o coordenador local da Unicef, Gabriel Pereira, metade da população de Moçambique, 10 milhões de pessoas, tem até 18 anos. E a expectativa de vida, que antes da Aids havia chegado a 45 anos, hoje está em 37,1, devendo cair para 35,9 em 2010.

Atualmente, há proporcionalmente mais gente com o vírus nas regiões central e sul de Moçambique, do que na Norte. O único motivo para essa diferença seria o fato de que, por se tratar de área fundamentalmente rural, o vírus chegou ao Norte alguns anos depois. Ou seja, a Aids ainda está em ritmo ascendente no país.

Moçambique, caro leitor, esse país de tanta esperança, está na colocação 168 do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, que faz a medição da situação em 173 países. O bairro onde vive a família Xavier é uma favela de Maputo, a Polana Caniço. Maputo é um dos lugares de melhor qualidade de vida no país. Relatório da Unicef, por exemplo, sustenta que na cidade de Maputo apenas 3% das crianças vivem na pobreza absoluta. Em Zambézia, norte do país, são 75%.

Como as coisas acontecem em Moçambique
Quem leu até aqui, ao ver a foto que ilustra essa matéria pode imaginar que fomos ao inferno. Já dissemos o contrário na primeira matéria abordando Moçambique. E para confirmar a tese anterior, vale contar como localizamos a família Xavier.

Havíamos marcado uma entrevista para quarta (10) à tarde com o coordenador local da Unicef. Tínhamos a manhã livre. Mas até terça-feira à noite não sabíamos se poderíamos usá-la por conta dos diversos trabalhos que envolvem uma cobertura como esta. É preciso organizar os deslocamentos, agendar conversas, escrever matérias, tirar entrevistas gravadas, fazer e baixar fotos, tratá-las, postá-las em ftp e ainda acessar a internet tanto para enviar o produzido como para conversar com os que ficaram na redação e dão a maior força para que tudo ocorra bem com o nosso trabalho.

De qualquer forma, quando na quarta pela manhã descobrimos que tínhamos dado conta das tarefas citadas e que poderíamos fazer algo mais, decidimos visitar uma comunidade, Polana Caniço.

Quando entramos no táxi, nosso motorista lembrou que conhecia a coordenadora de uma Ong daquele subúrbio, como eles se referem às favelas. E foi assim que chegamos a Joana Manoela, fundadora e coordenadora do Kulima, entidade que existe há 13 anos, tendo nascido logo após a assinatura do tratado que pôs fim à guerra em Moçambique. Até o telefonema de Antônio ela nunca havia ouvido falar de nós. Ela não tinha nenhuma referência do nosso trabalho.

Em quinze minutos estávamos à frente de Joana que nos colocou para conversar com sua equipe, entre eles Camilo Sitoe, coordenador adjunto do projeto, e da enfermeira Goretti Langa, que nos levaram à casa da família Xavier. Já nos sentimos amigos desse pessoal, tamanha a atenção e generosidade com que fomos recebidos. E convivemos com eles apenas duas horas.

Depois da entrevista com o pessoal da Kulima, andamos por aproximadamente 45 minutos pela Polana Caniço. O leitor em breve poderá ver fotografias dessa visita produzidas por Juliana Di Thomazo. Como já havíamos andado a sós por outros cantos de Maputo nem nos demos ao trabalho de perguntar aos novos amigos se estávamos seguros ali. Sabíamos estar.

Aquela certa força estranha
Moçambique cresceu em média 8,5% de 1997 a 2005. Deve crescer 7% em 2006. A previsão é 10% para 2007. Ou seja, ótimo ritmo. Um crescimento no patamar da Índia e da China, num país muito pobre, mas não populoso. Mesmo assim, metade do orçamento do Estado ainda é proveniente de recursos internacionais. Ou seja, a dependência externa é imensa e isso engessa o vôo próprio, já que todo dinheiro vem carimbado para investimentos na área que o doador define. Mesmo assim alguns índices demonstram que tem se conseguido realizar um crescimento não concentrador. A população que vive abaixo da linha de pobreza de consumo desceu de 69% para 54% de 1997 para 2003. Diminuição de 15 pontos em seis anos. E mesmo tendo saído de uma guerra apenas em 1992, o país tem baixos índices de violência urbana.

O leitor pode estar se perguntando, o que disse Xavier na visita que fizemos? Quase nada, ele está muito doente. E as pessoas já descobriram em Moçambique que quando não se usam os tratamentos mais modernos para tratar alguém que contraiu o HIV, infelizmente, as chances de recuperação inexistem. Xavier não sabe, mas talvez se Moçambique não dependesse tanto de recursos externos talvez seus governantes pudessem quebrar patentes e ir à luta para garantir tratamento adequando ao seu povo.

Mas depois da curta conversa com ele, saímos de sua casa e à beira do portão falamos um pouco mais com suas filhas. A mais nova, a belíssima Amelinha, é uma das beneficiadas pelo Projeto Kulima, que contribui para que jovens pobres possam estudar. Para obter recursos para esse apoio, o Kulima conta com a contribuição de organizações de países mais ricos que atraem “padrinhos” para crianças da região. Atualmente esse tipo de ação beneficia 840 delas, que recebem cadernos, roupas básicas, reforço e acompanhamento escolar. Elas ainda podem participar de atividades extracurriculares na área de cultura, esportes e formação profissional. E contar com a orientação e o acompanhamento de profissionais da área de saúde e do serviço social.

Amelinha, filha de Xavier, é uma das crianças que tem um padrinho no exterior. Ele, como outros, destina 200 dólares ao ano para que ela seja acompanhada pelo Kulima. Amelinha também já faz parte das 380 mil crianças moçambicanas que são órfãs por conta da Aids. Número que deve chegar a 610 mil até 2010.

Não perguntei a Amelinha o quanto feliz ela era. Mas fiquei emocionado ao vê-la dizer “que bonita estou”, quando viu sua foto reproduzida na tela da máquina digital. A seguir sua irmã, Júlia, repetiu a mesma frase. Pareciam estar repetindo um mantra de felicidade, mesmo depois de uma entrevista em que esse jornalista e a fotógrafa não conseguiram esconder uma certa tristeza. Que bonita estou...