A morte da rainha preta e pobre
Publico abaixo mais um trecho do livro Mulheres Assassinadas em Pernambuco, de autoria de Aureliano Biancarelli, que será lançado hoje na livraria Cultura do Conjunto Nacional, às 18h30.
A morte de Cristiane, a “rainha do Carnaval do Cabo de Santo Agostinho”, está na lista dos assassinatos que mais levantam suspeitas sobreas diligências policiais e reforçam o sentimento de impunidade. Especialmente quando a vítima é pobre e negra, mesmo que a cidade a tenha escolhido como rainha, como se deu com Cristiane.
O concurso aconteceu em fevereiro de 2002, e a passarela foi a praia do Gaibu, uma das mais conhecidas e procuradas do Cabo.
Cristiane de Lima dos Santos tinha 22 anos e em novembro daquele ano de 2002 foi contratada como gerente do Motel Califórnia, às margens da estrada que liga a BR-101 a Porto de Galinhas, no município de Ipojuca.
Na noite da Sexta-Feira Santa do ano seguinte, 18 de abril de 2003, Cristiane desapareceu. Na manhã do sábado seu corpo foi encontrado despidoe atingido por quatro tiros às margens da estrada que leva ao Porto de Suape. O principal suspeito é José Apolônio de Oliveira, 55 anos, o “Bobinha”, então vereador em Ipojuca e dono do Motel Califórnia. No dia em que Cristiane desapareceu, ele ligou várias vezes para sua casa, pedindo que viesseao trabalho, mesmo sendo sua folga. Os funcionários do motel viram Cristiane chegando e saindo logo em seguida, em um carro não identificado.
Na gaveta
No final de outubro de 2006, o promotor de Justiça Miguel Sales, quese ocupa do caso, ainda estava cobrando do Poder Judiciário notícias sobreo andamento do inquérito. Em casos de rotina, e de acordo com a lei, a fase de diligências deve estar concluída em 30 dias. No caso de Cristiane, o inquérito já foi devolvido várias vezes pelo Ministério Público, por contade falhas nas investigações e nas perícias.
“Estou há dez meses sem notícias desse inquérito”, diz o promotorMiguel Sales, 59 anos, quatro filhos. “Não quero que fique na gaveta dealgum delegado.”
Se o inquérito não foi concluído isso significa que ainda não há provas suficientes para denunciar alguém pela morte de Cristiane. Significa também que não há julgamento previsto e que não se sabe nem se um dia haverá alguém para julgar e punir.
Para a opinião pública, o culpado é o dono do motel e então vereadorde Ipojuca, o “Bobinha”. Para a Justiça, ainda não há provas. José Apolônio perdeu o que seria seu quinto mandato nas eleições de 2004 para a Câmara da cidade, mas continua proprietário do Motel Califórnia e com “muitas influências na região”. Por causa disso, pedimos que o caso fosse conduzido pela Delegacia de Homicídios do Recife, que é especializada e não está sujeita aos interesses locais”, diz o promotor.
A pedido do Ministério Público, reforçado depois pelo governador e pela Secretaria de Defesa Social, a morte de Cristiane passou a ser pautade audiência pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, que trata das mortes de Maria Eduarda Dourado e Tarsila Gusmão. As duas, então com 16 anos, foram mortas na praia de Serrambi, em maio de 2003, na mesma região em que Cristiane foi assassinada. “Minha preocupação é que, enquanto as mortes de Maria Eduarda e Tarsila ainda ganham destaque na mídia e envolvem pessoas importantes, o caso de Cristiane, por ela ser pobre, possa ficar esquecido”, diz o promotor.
O caso de “Serrambi”, como ficou conhecido, causa ainda mais estranhamento, diz Miguel Sales. “Como é possível que um inquérito dessamonta, com a interferência de tantas autoridades, possa estar ainda tãocheio de lacunas e imperfeições?”
Motel Califórnia
A irmã mais nova de Cristiane, de 13 anos, ficou muda assim que viu a irmã morta. Recuperou a fala semanas depois, com acompanhamento especializado. Doracy de Lima Santos, mãe de Cristiane, tem medo de falar sobre a morte da filha. O Centro das Mulheres do Cabo e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, que vêm acompanhando o caso, dizem que a família procura não aparecer. “A mãe sempre diz: ‘eu aqui em casa tenho duas meninas; já perdi uma, não quero perder outra’”, relata a vereadora Ana Selma Santos, 40 anos, uma filha, socióloga e professora.“A gente sabe quem é, mas não tenho como me defender, tenho receio deinsistir. Se denunciar, vou ficar sozinha”, diz a mãe.
Doracy pode contar com as Mulheres do Cabo, com o Fórum deMulheres de Pernambuco, com o Ministério Público, até com a opinião pública. Para ela, nada disto basta. “Quando se trata de pobre, ninguém tem interesse”, costuma dizer.(....)
1 Comments:
Arquivaram mesmo o caso da Cristiane?
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